30/10/2012

Making of 02


Ode à percepção


As ‘coisas indescritíveis’ do mundo do consumo


     (Washington Novaes, jornalista, 24/10/2012)
      O historiador Eric J. Hobsbawn, que morreu no começo da semana passada, deixou livros em que caracterizou de forma contundente os tempos que estamos vivendo. “Quando as pessoas não têm mais eixos de futuros sociais acabam fazendo coisas indescritíveis”, escreveu ele no ensaio Barbárie: Manual do Usuário. Ou, então, “aí está a essência da questão: resolver os problemas sem referências do passado”. Por isso, certamente Hobsbawn não se espantaria com a notícia estampada no jornal O Estado de S. Paulo poucos dias antes de sua morte: Na Espanha, cadeados nas latas de lixo (27/9). “Com cada vez mais pessoas vivendo de restos, prefeitura (de Madri) tranca as latas como medida de saúde pública.” Nada haveria a estranhar num país onde a taxa de desemprego está por volta de 25%, 22% das famílias vivem na pobreza e 600 mil não têm nenhuma renda.
     E que pensaria o historiador com a notícia (Estado, 26/9) de que as autoridades de Bulawato, no Zimbábue (África), “pediram aos cidadãos que sincronizem as descargas de seus vasos sanitários para poupar água. (…) Os moradores devem esvaziar os vasos apenas a cada três dias e em horários determinados”? Provavelmente Hobsbawn não se espantaria, informado das estatísticas da ONU segundo as quais 23% da população mundial (mais de 1,5 bilhão de pessoas) defeca ao ar livre por não ter instalações sanitárias em sua casa (As do Zimbábue ainda estão à frente).
     E da China que pensaria ele ao ler nos jornais (22/9) que a prefeitura de Xinjian, no leste do país, “está sob intensa crítica da opinião pública após enjaular dezenas de mendigos no mesmo lugar durante um festival religioso”? Ao lado da foto das jaulas nas ruas com mendigos encarcerados, a explicação de autoridades de que assim fizeram porque os pedintes assediavam peregrinos e corriam risco de ser atropelados ou pisoteados. Mas “entraram nas jaulas voluntariamente”. Será para não correr riscos desse tipo que “quatro estrangeiros de origem ignorada” vivem há três meses no aeroporto de Cumbica, em São Paulo, recusando-se a dizer sua nacionalidade e procedência (Folha de S.Paulo, 29/9)? “Em tempos de transformação”, disse o psicanalista Leopold Nosek a Sonia Racy (Estado, 7/10), “quando o velho não existe mais e o novo ainda não se estruturou, criam-se os monstros”.
     Para onde se caminhará? Na Europa, diz a Organização Internacional do Trabalho que, com todo o sul do continente em crise, o desemprego na faixa dos 15 aos 24 anos crescerá 22% em 2013, pouco menos no ano seguinte. Nos Estados Unidos, a taxa de desemprego entre jovens está em 17,4%, talvez caia para 13,35% até 2017 (Agência Estado, 5/9). O desemprego médio nos 17 países da zona do euro subiu para 11,4%.
    Pulemos para o lado de cá. Um em cada cinco brasileiros entre 18 e 25 anos não trabalha nem estuda (Estado, 26/9). São 5,3 milhões de jovens. Computados também os que buscam trabalho, chega-se a 7,2 milhões. As mulheres são maioria. E o déficit ocorre embora o País tenha gerado 2,2 milhões de empregos formais em 2011.
     As estatísticas são alarmantes. A revista New Scientist (28/7) diz que 1% da população norte-americana controla 40% da riqueza. Já existem 1.226 bilionários no mundo. “Nós somos os 99%”, diz o movimento de protesto Occupy. Entre suas estatísticas estão as que os relatórios do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) vêm publicando desde a década de 1990: pouco mais de 250 pessoas, com ativos superiores a US$ 1 bilhão cada, têm, juntas, mais do que o produto bruto conjunto dos 40 países mais pobres, onde vivem 600 milhões de pessoas. Já a metade mais pobre da população mundial fica com 1% da renda global total. Menos de 20% da população mundial, concentrada nos países industrializados, consome 80% dos recursos totais. E 92 mil pessoas já acumulam em paraísos fiscais cerca de US$ 21 trilhões, afirma a Tax Justice Network.
    E que se fará, com a população mundial aumentando e os recursos naturais – inclusive terra para plantar alimentos – escasseando? É cada vez maior o número de economistas que já mencionam com frequência a “crise da finitude de recursos”. Os preços médios de alimentos “devem dobrar até 2030, incluídos milho (mais 177%), trigo (mais 120% e arroz (107%)”, alerta a ONG Oxfam (Instituto Carbono Brasil, 6/9). 775 milhões de jovens e adultos são analfabetos e não têm como aumentar a renda (Rádio ONU, 10/9).
    De volta outra vez ao nosso terreiro, vemos que “mais de 90% das cidades estão sem plano para o lixo” (Estado, 2/8). Na cidade de São Paulo, 90% do lixo reciclável vai para aterros sanitários (CicloVivo, 10/8). Diariamente 5,4 bilhões de litros de esgotos não tratados são descartados. Perto de metade dos domicílios não é ligada a redes de esgotos. A perda de água nas redes de distribuição (por furos, vazamentos, etc.) está por volta de 40% do total. Mas 23% das cidades racionam água, segundo o IBGE (Estado, 20/10/2011). E grande parte da água do Rio São Francisco que será transposta irá para localidades com essas perdas – antes de corrigi-las. E com o líquido custando muito mais caro, já que muita energia será necessária para elevá-lo aos pontos de destino.
    Enquanto isso, a campanha eleitoral correu morna em praticamente todo o País, com candidatos fazendo de conta que vivemos na terra da promissão, não precisamos de planos diretores rigorosos nas cidades, não precisamos responsabilizar quem mais consome – e mais gera resíduos -, não precisamos impedir a impermeabilização do solo das cidades nem impedir a ocupação de áreas de risco.
   “A sociedade de consumo”, escreveu Hobsbawn, “interessa-se apenas pelo que pode comprar agora e no futuro”. Mas terá de resolver o problema de 1 bilhão de idosos em dez anos (Fundo de População das Nações Unidas, 1.º/10).

29/10/2012

O açúcar


O branco açúcar que adoçará meu café
Nesta manhã de Ipanema
Não foi produzido por mim
Nem surgiu dentro do açucareiro por milagre.

Vejo-o puro
E afável ao paladar
Como beijo de moça, água
Na pele, flor
Que se dissolve na boca. Mas este açúcar
Não foi feito por mim.

Este açúcar veio
Da mercearia da esquina e
Tampouco o fez o Oliveira,
Dono da mercearia.
este açúcar veio
De uma usina de açúcar em Pernambuco
Ou no Estado do Rio
E tampouco o fez o dono da usina.

Este açúcar era cana
E veio dos canaviais extensos
Que não nascem por acaso
No regaço do vale.

Em lugares distantes,
Onde não há hospital,
Nem escola, homens que não sabem ler e morrem de fome
Aos 27 anos
Plantaram e colheram a cana
Que viraria açúcar.
Em usinas escuras, homens de vida amarga
E dura
Produziram este açúcar
Branco e puro
Com que adoço meu café esta manhã
Em Ipanema.

(Ferreira Gullar, 1980)

Making of 01


Quero ficar no seu corpo feito tatuagem


27/10/2012

Produtividade acadêmica


"[...] não estão interessados em fazer boa ciência, mas em ter o maior número possível de papers publicados. Querem publicar muito. Ficam fazendo sempre a mesma coisa, mudam um detalhe no trabalho, mencionam coisas sem importância.
Seria bom o Brasil ter um sistema mais sofisticado para medir a produção científica, algo que faça sentido [...] todo aluno de doutorado deveria escrever um resumo de sua tese que sua avó entendesse".  
(Bruce Alberts, editor-chefe da revista Science, na Revista Pesquisa FAPESP, p. 30, n.199). 


Minds


Deadline


24/10/2012

Walk off the Earth

Somebody That I Used to Know

Ayn Rand


“Quando você perceber que, para produzir precisa obter a autorização de quem não produz nada; quando comprovar que o dinheiro flui para quem negocia não com bens, mas com favores; quando perceber que muitos ficam ricos pelo suborno e por influência, mais que pelo trabalho; que as leis não nos protegem deles mas, pelo contrário, são eles que estão protegidos de você; quando perceber que a corrupção é recompensada e a honestidade se converte em auto-sacrifício, então poderá afirmar, sem temor de errar, que sua sociedade está condenada.” 

(Ayn Rand)

A Leica das câmeras fotográficas


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21/10/2012



CASAL DE TRÊS


O sogro era um santo e patusco cidadão. Assim que o viu arremessou-se, de braços abertos:
- Como vai essa figura? Bem?
Filadelfo abraçou e deixou-se abraçar. E rosnou, lúgubre:
- Essa figura vai mal.
Espanto do sogro:
- Por que, carambolas? - E insistia: - Vai mal por quê?
Caminhando pela calçada, lado a lado com o velho bom e barrigudo, Filadelfo foi enumerando as suas provações, só comparáveis às de Jó:
- É o gênio de sua filha. Sou desacatado, a três por dois Qualquer dia apanho na cara!
Dr. Magarão assentiu, grave e consternado:
- Compreendo, compreendo. - Suspira, admitindo: - Puxou à mãe. Gênio igualzinho. A mãe também é assim!
Súbito Filadelfo estaca. Põe a mão no ombro do outro; interpela-o:
- Quero que o senhor me responda o seguinte: isso está certo? É direito?
O velho engasga:
- Bem. Direito, propriamente, não sei. - Medita e pergunta: - Você quer uma opinião sincera? Quer?
- Quero.
E o sogro:
- Então, vamos tomar qualquer coisa ali adiante. Vou te dizer umas coisas que todo homem casado devia saber.
Entram num pequeno bar, ocupam uma mesa discreta. Enquanto o garçom vai e vem, com uma cerveja e dois copos, Dr.Magarão comenta:
- Você sabe que eu sou casado, claro. Muito bem. E, além da minha experiência, vejo a dos outros. Descobri que toda mulher honesta é assim mesmo.
Espanto de Filadelfo:
- Assim como?
O gordo continua:
- Como minha filha. Sem tirar, nem pôr. Você, meu caro, desconfie da esposa amável, da esposa cordial, gentil. A virtude é triste azeda e neurastênica.
Filadelfo recua na cadeira:
- Tem dó! Essa não! - E repetia, de olhos esbugalhados, lambendo a espuma da cerveja: - Essa, não!
Mas o sogro insistiu. Pergunta:
- Sabe qual foi a esposa mais amável que eu já vi na minha vida? Sabe? Foi uma que traia o marido com a metade do Rio de Janeiro, inclusive comigo! - Espalmou a mão no próprio peito, numa feroz satisfação retrospectiva: - Também comigo! E tratava o marido assim, na palma da mão!
Uma hora depois, saiam os dois do pequeno bar. Dr. Magarão, com sua barriga de ópera-bufa e bêbado, trovejava:
- Você deve se dar por muito satisfeito! Deve lamber os dedos! Dar graças a Deus!
O genro, com as pernas bambas, o olho injetado, resmunga:
- Vou tratar disso!
O DESGRAÇADO
Não mentira ao sogro. Sua vida conjugal era, de fato, de uma melancolia tremenda. Descontado o período da lua de mel, que ele estimava em oito dias, nunca mais fora bem tratado. Sofria as mais graves desconsiderações, inclusive na frente de visitas. E, certa vez, durante um jantar com outras pessoas, ela o fulmina, com a seguinte observação, em voz altíssima:
- Vê se para de mastigar a dentadura, sim?
Houve um constrangimento universal. O pobre do marido, assim desfeiteado, só faltou atirar-se pela janela mais próxima. Após três anos de experiência matrimonial, ele já não esperava mais nada da mulher, senão outros desacatos. E só não compreendia que Jupira, amabilíssima com todo mundo, fizesse uma exceção para ele, que era, justamente, o marido. Depois de ter deixado o sogro, voltou para casa desesperado. Chega, abre a porta, sobe a escada e quando entra no quarto recebe a intimação:
- Não acende a luz!
Obedeceu. Tirou a roupa no escuro e, depois, andou caçando o pijama, como um cego. E quando, afinal, pôde deitar-se, fez uma reflexão melancólica: há dez meses ou mesmo um ano que o beijo na boca fora suprimido entre os dois. O máximo que ele, intimidado, se permitia, era roçar com os lábios a face da esposa. Se queria ser carinhoso demais, ela o desiludia: "Na boca não! Não quero!". Outra coisa que o amargurava era o seguinte: a negligência da mulher no lar. Não se enfeitava, não se perfumava. Deitado ao seu lado, ele pensava agora, lembrando-se da teoria do sogro: - "Será que a esposa honesta também precisa cheirar mal?".
MUDANÇA
Um mês depois, ele chega em casa, do trabalho, e acontece uma coisa sem precedentes: a mulher, pintada, perfumada, se atira nos seus braços. Foi uma surpresa tão violenta que Filadelfo perde o equilíbrio e quase cai. Em seguida, ela aperta entre as mãos o seu rosto e o beija na boca, num arrebatamento de namorada, de noiva ou de esposa em lua de mel. Ele apanha o jornal, que deixara cair. Maravilhado, pergunta:
- Mas que é isso? Que foi que houve?
Jupira responde com outra pergunta:
- Não gostou?
Ele senta confuso.
- Gostar, gostei, mas... - Ri: - Você não é assim, você não me beija nunca.
Jupira tem um gesto de uma petulância que o delicia: vem sentar-se no seu colo, encosta o rosto no dele. Filadelfo é acariciado. Acaba perguntando:
- Explica este mistério. Aconteceu alguma coisa. Aconteceu?
Ela suspira:
- Mudei ora!
SOFRIMENTO
A princípio, Filadelfo conjeturou: "É hoje só". No dia seguinte, porém, houve a mesma coisa. Ele coçava a cabeça: "Aqui há dente de coelho!". Coincidiu que, por essa ocasião, os seus sogros aparecessem para jantar. Dr.Magarão, enquanto a mulher conversava com a filha, levou o genro para a janela: "Como é? Como vai o negócio aqui?"
Filadelfo exclama:
- Estou besta! Estou com a minha cara no chão!
O velho empina a barriga de ópera-bufa:
- Por quê?
E o genro:
- Tivemos aquela conversa. Pois bem. Jupira mudou. Está uma seda; e me trata que só o senhor vendo!
Ao lado, mascando o charuto apagado, o velho balança a cabeça:
- Ótimo!
- O negócio está tão bom, tão gostoso, que eu já começo a desconfiar!
O sogro põe-lhe as duas mãos nos ombros:
- Queres um conselho? De mãe pra filho? Não desconfia de nada, rapaz. Te custa ser cego? Olha! O marido não deve ser o último a saber, compreendeu? O marido não deve saber nunca!
LUA DE MEL
Seguindo a sugestão do sogro, de não quis investigar as causas da mudança da esposa. Tratou de extrair o máximo possível da situação, tanto mais que passara a viver num regime de lua de mel. Dias depois, porém, recebe uma minuciosíssima carta anônima, com dados, nomes, endereços, duma imensa verossimilhança. O missivista desconhecido começava assim: "Tua mulher e o Cunha...". O Cunha era, talvez, o seu maior amigo e jantava três vezes por semana ou, no mínimo, duas, com o casal. A carta anônima dava até o número do edifício e o andar do apartamento em Copacabana onde os amantes se encontravam. Filadelfo lê aquilo, relê e rasga, em mil pedacinhos, o papel indecoroso. Pensa no Cunha, que é solteiro, simpático, quase bonito e tem bons dentes. Uma conclusão se impõe: sua felicidade conjugal, na última fase, é feita á base do Cunha. Filadelfo continuou sua vida, sem se dar por achado, tanto mais que Jupira revivia, agora, os momentos áureos da lua de mel. Certa vez jantavam os três, quando cai o guardanapo de Filadelfo. Este abaixa-se para apanhar e vê, insofismavelmente, debaixo da mesa, os pés da mulher e do Cunha, numa fusão nupcial, uns por cima dos outros. Passa-se o tempo e Filadelfo recebe a notícia: o Cunha ficara noivo! Vai para casa, preocupadíssimo. E, lá, encontra a mulher de bruços, na cama, aos soluços. Num desespero obtuso, ela diz e repete:
- Eu quero morrer! Eu quero morrer!
Filadelfo olhou só: não fez nenhum comentário. Vai numa gaveta, apanha o revólver e sai á procura do outro. Quando o encontra, cria o dilema:
- Ou você desmancha esse noivado ou dou-lhe um tiro na boca, seu cachorro!
No dia seguinte, o apavorado Cunha escreve uma carta ao futuro sogro, dando o dito por não dito. À noite, comparecia, escabreado, para jantar com o casal. E, então, à mesa, Filadelfo vira-se para o amigo e decide:
- Você, agora, vem jantar aqui todas as noites!
Quando o Cunha saiu, passada a meia-noite, Jupira atira-se nos braços do marido:
- Você é um amor!

(Nelson Rodrigues. A vida como ela é. Rio de Janeiro, 1961.)

16/10/2012





São Benedito



14/10/2012

A mesada e o mensalão


A mentira foi a geradora de todas as verdades, meias verdades, indícios desprezados e indícios manipulados que deram a dimensão do escândalo e o espírito do julgamento do "mensalão".
Por ora, o paradoxo irônico está soterrado no clima odiento que, das manifestações antidemocráticas de jornalistas e leitores às agressões verbais no Supremo, restringe a busca de elucidação de todo o episódio. Pode ser que mais tarde contribua para compreenderem o nosso tempo de brasileiros.
Estava lá, na primeira página de celebração das condenações de José Dirceu e José Genoino, a reprodução da primeira página da Folha em 6 de junho de 2005. Primeiropasso para a recente manchete editorializada --CULPADOS--, a estonteante denúncia colhida pela jornalista Renata Lo Prete: "PT dava mesada de R$ 30 mil a parlamentares, diz Jefferson". O leitor não tinha ideia de que Jefferson era esse.
Era mentira a mesada de R$ 30 mil. Nem indício apareceu desse pagamento de montante regular e mensal, apesar da minúcia com que as investigações o procuraram. Passados sete anos, ainda não se sabe quanto houve de mentira, além da mensalidade, na denúncia inicial de Roberto Jefferson. A tão citada conversa com Lula a respeito de mesada é um exemplo da ficção continuada.
A mentira central deu origem ao nome --mensalão-- que não se adapta à trama hoje conhecida. Torna-se, por isso, ele também uma mentira. E, como apropriado, o deputado Miro Teixeira diz ser mentira a sua autoria do batismo, cujo jeito lembra mesmo o do próprio Jefferson.
Nada leva, porém, à velha ideia de alguém que atirou no que viu e acertou no que não viu. A mentira da denúncia de Roberto Jefferson era de quem sabia haver dinheiro, mas dinheiro grosso: ele o recebera. E não há sinal de que o tenha repassado ao PTB, em nome do qual colheu mais de R$ 4 milhões e, admitiria mais tarde, esperava ainda R$ 15 milhões. A mentira de modestos R$ 30 mil era prudente e útil.
Prudente por acobertar, eventualmente até para companheiros petebistas, a correnteza dos milhões que também o inundava. E útil por bastar para a vingança ou chantagem pela falta dos R$ 15 milhões, paralela à demissão de gente sua por corrupção no Correio. Como diria mais tarde, Jefferson supôs que o flagrante de corrupção, exibido nas TVs, fosse coisa de José Dirceu para atingi-lo. O que soa como outra mentira, porque presidia o PTB e o governo não hostilizaria um partido necessário à sua base na Câmara.
Da mentira vieram as verdades, as meias verdades e nem isso. Mas a condenação de Roberto Jefferson, por corrupção passiva, ainda não é a verdade que aparenta. Nem é provável que venha a sê-lo.
MAIS DEDUÇÃO
Em sua mais recente dedução para voto condenatório, o presidente do Supremo, Ayres Britto, deu como certo que as ações em julgamento visaram a "continuísmo governamental.
Golpe, portanto, nesse conteúdo da democracia que é o republicanismo, que postula renovação dos quadros de dirigentes".
Desde sua criação e no mundo todo, alcançar o poder, e, se alcançado, nele permanecer o máximo possível, é a razão de ser dos partidos políticos. Os que não se organizem por tal razão, são contrafações, fraudes admitidas, não são partidos políticos.
Sergio Motta, que esteve politicamente para Fernando Henrique como José Dirceu para Lula, informou ao país que o projeto do PSDB era continuar no poder por 20 anos.
Não há por que supor que, nesse caso, o ministro Ayres Britto tenha deduzido haver golpe ou plano golpista. Nem mesmo depois que o projeto se iniciou com a compra de deputados para aprovar a reeleição.

Janio de Freitas, colunista e membro do Conselho Editorial da Folha, é um dos mais importantes jornalistas brasileiros. Analisa com perspicácia e ousadia as questões políticas e econômicas.