15/05/2014

O longo prazo chegou

O que restará do lulismo quando a bolha de consumo estourar?

por CÉSAR BENJAMIN

O PT assumiu o governo federal há doze anos, propondo-se inaugurar um novo ciclo de desenvolvimento centrado no mercado interno; em vez disso, criou uma bolha de consumo que já não se sustenta. Prometeu aprofundar a democracia e resgatar os valores republicanos; em vez disso, atolou o Estado no fisiologismo, fortaleceu as oligarquias e desmoralizou a política. São aspectos gêmeos de um ciclo que está perto do fim, deixando o Brasil em voo cego.
Começo pela economia. Com o esgotamento do velho desenvolvimentismo, no início da década de 80, acentuou-se o debate sobre a necessidade de buscarmos alternativas estratégicas para o país. Duas áreas apareciam como candidatas à posição de locomotiva de um novo modelo econômico: as exportações, pois o Brasil não desenvolvera uma indústria dotada de espírito animal  para disputar o mercado mundial, e o mercado interno, historicamente atrofiado pela má distribuição da renda nacional. Não eram posições excludentes, é claro, mas havia entre elas uma diferença de ênfase. Ambas estavam presentes no jovem PT, no qual eu militava. O segundo caminho me parecia mais ajustado à nossa meta de compatibilizar crescimento econômico e justiça social.
A prolongada crise inflacionária, que durou até a primeira metade da década de 90, e o experimento neoliberal, que se seguiu, adiaram esse passo por vinte anos. Instalado em 2003, o governo do PT, depositário da memória desse debate, representou a chance de finalmente romper o impasse, ajudado pelo fato de que logo se instalou uma conjuntura internacional excepcionalmente favorável ao Brasil: nos anos seguintes, a disparada dos preços dos produtos que exportamos abriu espaço para um incremento veloz do mercado interno sem que isso gerasse grandes pressões sobre as contas externas, nosso gargalo tradicional. A conjuntura permaneceu favorável mesmo depois da crise financeira de 2008: a China continuou a crescer, demandando grande quantidade de produtos brasileiros, enquanto os Estados Unidos irrigavam o mundo com dinheiro barato. Continuamos a contar com um comércio exterior em ascensão e financiamento externo abundante.

O governo Lula aproveitou a maré e deu alguns passos na boa direção: manteve a política de aumentos reais para o salário mínimo, iniciada cerca de dez anos antes; expandiu os programas de transferência de renda, agora agrupados no Bolsa Família; patrocinou maior formalização no mercado de trabalho, o que ajudou a garantir um aumento na renda média dos assalariados; expandiu o crédito.
Essa combinação, tornada possível pela ausência momentânea de restrições externas, criou uma sensação de bem-estar e obteve grande êxito político. O PT considerou que havia lançado as bases do novo ciclo de desenvolvimento que tinha sido objeto de tanto debate entre nós. Mantive-me em posição crítica: os instrumentos usados pelo governo eram, em geral, positivos, mas insuficientes. Deveriam ser apenas o motor de arranque. Se outras questões não fossem enfrentadas, viveríamos uma frustração. Acumulavam-se, pelo menos, cinco elementos regressivos:

(a) As políticas governamentais privilegiavam, de longe, a disseminação de bens de consumo individual, como eletrodomésticos e automóveis, praticamente ignorando os equipamentos de uso coletivo que são essenciais para a qualidade de vida da população, especialmente nas grandes cidades: saneamento, transporte de massas, educação, saúde, segurança;

(b) O câmbio desalinhado e outros fatores produziam sinais de uma desindustrialização precoce, desassociada do crescimento da renda per capita;

(c) A inserção internacional do Brasil regredia, com a reprimarização da pauta de exportações;

(d) A geração de empregos permanecia concentrada em atividades de baixa qualificação e baixa remuneração, com dificuldades tanto no lado da oferta, pela má qualidade do sistema educacional, quanto da demanda, pois os novos postos de trabalho se concentravam no setor de serviços não ligado à produção (balconistas, motoboys, vigilantes) e na construção civil. Em pleno século XXI, a população brasileira se deslocava para setores de baixa produtividade, incapazes de garantir um mercado de trabalho dinâmico, em quantidade e qualidade, condição essencial para uma elevação consistente dos rendimentos do trabalho;

(e) A infraestrutura econômica foi abandonada, com acúmulo de problemas na malha rodoviária (entregue aos políticos do PR), descalabro no setor elétrico (entregue ao PMDB de José Sarney), desgoverno na área de combustíveis líquidos e assim por diante.

Essas cinco grandes áreas reatualizavam desafios históricos que o Brasil havia superado, ou estava em condições de fazê-lo, e sinalizavam problemas à frente. Mas não adiantava propor o debate: assim como Collor, na expressão de Chico de Oliveira, foi a ‘falsificação da ira’, um Lula onipresente e falante encarnava a falsificação do otimismo. Os que permaneceram fiéis ao pensamento crítico e a uma ideia de nação eram sempre colocados sob a suspeita de agir movidos por rancor ou defender interesses inconfessáveis. Não havia motivos reais para a crítica. Os adesistas, mesmo que de última hora, entraram na moda.
Os problemas negligenciados nos dez últimos anos têm algo em comum: são difíceis, exigem capacidade técnica e planejamento sério, plurianual. São de longa maturação. Por isso, tendem a ser postergados por um arranjo político que só enxerga o curtíssimo prazo, movido no compasso do calendário eleitoral bianual. Hoje, 2014 é o limite. Depois será a vez de pensar em 2016. Questões como educação e infraestrutura não cabem nesse horizonte de tempo.
Ao optarem pelos caminhos mais fáceis, os governos do PT, em vez de abrirem um ciclo longo de desenvolvimento para o país, como desejávamos, aproveitaram a bonança internacional para criar uma bolha de consumo que está chegando ao fim, pois doravante não contaremos mais com o bônus que o mundo nos deu nos últimos anos. A China desacelera seu crescimento e diversifica seus fornecedores, enquanto os Estados Unidos anunciam o fim da política monetária frouxa que nos trazia dinheiro barato. Nosso saldo comercial, construído com produtos primários, desaba, enquanto o deficit em serviços e rendas continua em expansão, como um dos subprodutos da gigantesca desnacionalização da economia. Com o desequilíbrio externo, o Banco Central reinicia um novo ciclo de alta nos juros, o que conspira contra o crescimento, já medíocre, e agrava o quadro fiscal. Haverá, inevitavelmente, ajustes para baixo na renda e no emprego, num contexto em que o endividamento das famílias se tornou muito alto.
A  única resposta do governo, até aqui, são ações pontuais para sustentar a demanda, ações inócuas, pois a indústria brasileira perdeu a capacidade de capturá-la. Ela, simplesmente, vaza para o exterior, sob a forma de aumento nas importações. A desindustrialização prossegue a tal ponto que a participação da indústria na economia brasileira está abaixo dos níveis da década de 40.
Libertados da histriônica cacofonia de Lula, fomos aos poucos descobrindo que a qualidade de vida dos brasileiros continua muito ruim. A ‘nova classe média’, inventada pelos marqueteiros, não tem saneamento, transporte, educação, saúde e segurança. E o Estado está completamente desaparelhado para fazer frente a tais demandas coletivas, pois se tornou incapaz de conduzir projetos minimamente complexos e que exigem esforço continuado. Muita coisa se anuncia, pouca coisa começa, e o que começa não anda. A disseminação do fisiologismo levou ao colapso a capacidade técnica e gerencial do setor público, em que imperam a improvisação, o marketing e a corrupção. Dilma Rousseff discursa, promete e tira fotos, mas nitidamente não comanda governo nenhum. Ano a ano, um abismo separa as medidas divulgadas e os resultados consolidados.
Coadjuvantes no mesmo espetáculo burlesco, o Executivo não executa e o Legislativo não legisla. Um cartel de políticos, donos de partidos desfibrados, em vez de governar a nação, governa a si mesmo. O cidadão sabe que está fora do jogo. Qualquer reforma política que não quebre a espinha desse cartel será um engodo, uma infindável e inútil discussão sobre regras, quando a nação pede, em primeiro lugar, que se definam objetivos e fins verdadeiros.
Minha crítica a essa forma de fazer política nada tem de udenismo. É uma crítica política: governos assim constituídos, incapazes de cuidar das grandes questões, não conseguem oferecer um rumo à nação. A governabilidade de curto prazo, garantida pelo loteamento do Estado, constrói-se à custa de uma crescente ingovernabilidade no longo prazo, pelo acúmulo de problemas não enfrentados. As manifestações de junho parecem indicar que o longo prazo chegou.
O lulismo não legou ao Brasil nenhuma iniciativa estruturante, nem no domínio da economia física nem no do aperfeiçoamento das instituições republicanas. Compará-lo ao getulismo, como o próprio Lula gosta de fazer, é um disparate. Falando de cabeça, Getúlio Vargas encontrou o Brasil na condição de uma fazenda de café, comandada pelos velhos ‘coronéis’, com eleições feitas a bico de pena, e nos legou quase todas as instituições que criaram o Brasil moderno: Petrobras, Vale do Rio Doce, BNDE (hoje BNDES), Álcalis, Companhia Siderúrgica Nacional, Fábrica Nacional de Motores, IBGE, Furnas (embrião da Eletrobras), DASP – além do voto feminino e secreto, dos direitos do trabalho, do salário mínimo, do Código de Águas, do conceito de serviço público... Tudo isso com uma espantosa mobilidade social ascendente – da qual o próprio Lula se beneficiou quando jovem –, que foi uma das marcas do período desenvolvimentista. Mobilidade sólida e vigorosa, pois associada, antes de tudo, à modernização do sistema produtivo, à ampliação das oportunidades de trabalho e à expansão da escola pública. Que diferença em relação aos tempos de hoje! Chega de boçalidades. O Brasil, definitivamente, não começou em 2003.

Lula, de certa forma, foi o anti-Getúlio, reforçando os coronéis que manejam o Bolsa Família e quase nos transformando em uma gigantesca fazenda de soja. Se o lulismo não se reciclar profundamente – não creio que isso possa acontecer –, terá sido uma experiência efêmera e pouco importante na história do Brasil. Afinal, o que restará dele quando a bolha de consumo estourar?

15/03/2014

Henry V

Com certeza um dos mais contagiantes discursos motivacionais já escritos, na cena 18 do IV Ato da peça Henry V, Willian Shakespeare  descreve o que seriam os minutos anteriores à Batalha de Agincourt na Guerra dos 100 Anos onde 512 soldados ingleses enfrentariam 10.000 soldados franceses no dia de São Crispiniano:

... St Crispin’s Day Speech:



WESTMORELAND:
O that we now had here
But one ten thousand of those men in England
That do no work to-day!

KING (Henry V):
What’s he that wishes so?
My cousin Westmoreland? No, my fair cousin.
If we are marked to die, we are enough
To do our country loss; and if to live,
The fewer men, the greater share of honour.
God’s will! I pray thee, wish not one man more.
Rather ... proclaim it Westmoreland, through my host,
That he which hath no stomach to this fight,
Let him depart. His passport shall be made,
And crowns for convoy put into his purse.
We would not die in that man’s company
That fears his fellowship to die with us.
This day is call’d the feast of Crispian.
He that outlives this day, and comes safe home,
Will stand a tip-toe when this day is named,
And rouse him at the name of Crispian.
He that shall live this day, and live old age,
Will yearly on the vigil feast his neighbours,
And say, “To-morrow is Saint Crispian.”
Then will he strip his sleeve and show his scars,
And say, “These wounds I had on Crispian’s day.”
Old men forget; yet all shall be forgot,
But he’ll remember with advantages
What feats he did that day. Then shall our names,
Familiar in his mouth as household words,
Harry the King, Bedford, and Exeter,
Warwick and Talbot, Salisbury and Gloucester,
Be in their flowing cups freshly rememb’red.
This story shall the good man teach his son;
And Crispin Crispian shall ne’er go by,
From this day to the ending of the world,
But we in it shall be remembered,
We few, we happy few, we band of brothers.
For he to-day that sheds his blood with me
Shall be my brother; be he ne’er so vile,
This day shall gentle his condition;
And gentlemen in England now a-bed
Shall think themselves accurs’d they were not here,
And hold their manhoods cheap whiles any speaks
That fought with us upon Saint Crispin’s day.


E após o fim da batalha, de onde os ingleses saíram vitoriosos:




Walt Whitman

A Sun-Bath-Nakedness 


Walt Whitman


Sunday, Aug. 27. Another day quite free from mark’d prostration and pain. It seems indeed as if peace and nutriment from heaven subtly filter into me as I slowly hobble down these country lanes and across fields, in the good air as I sit here in solitude with Nature open, voiceless, mystic, far removed, yet palpable, eloquent Nature. I merge myself in the scene, in the perfect day. Hovering over the clear brook-water, I am sooth’d by its soft gurgle in one place, and the hoarser murmurs of its three-foot fall in another. Come, ye disconsolate, in whom any latent eligibility is left—come get the sure virtues of creek-shore, and wood and field. Two months (July and August, ’77,) have I absorb’d them, and they begin to make a new man of me. Every day, seclusion every day at least two or three hours of freedom, bathing, no talk, no bonds, no dress, no books, no manners.
                                                                                          Walt Whitman’s Birthday Suit by Thomas Eakins, 1885
Shall I tell you, reader, to what I attribute my already much-restored health? That I have been almost two years, off and on, without drugs and medicines, and daily in the open air. Last summer I found a particularly secluded little dell off one side by my creek, originally a large dug-out marl-pit, now abandon’d, fill’d with bushes, trees, grass, a group of willows, a straggling bank, and a spring of delicious water running right through the middle of it, with two or three little cascades. Here I retreated every hot day, and follow it up this summer. Here I realize the meaning of that old fellow who said he was seldom less alone than when alone. Never before did I get so close to Nature; never before did she come so close to me. By old habit, I pencill’d down from to time to time, almost automatically, moods, sights, hours, tints and outlines, on the spot. Let me specially record the satisfaction of this current forenoon, so serene and primitive, so conventionally exceptional, natural.
An hour or so after breakfast I wended my way down to the recesses of the aforesaid dell, which I and certain thrushes, catbirds, &c., had all to ourselves. A light south-west wind was blowing through the tree-tops. It was just the place and time for my Adamic air-bath and flesh-brushing from head to foot. So hanging clothes on a rail near by, keeping old broadbrim straw on head and easy shoes on feet, havn’t I had a good time the last two hours! First with the stiff-elastic bristles rasping arms, breast, sides, till they turn’d scarlet—then partially bathing in the clear waters of the running brook—taking everything very leisurely, with many rests and pauses stepping about barefooted every few minutes now and then in some neighboring black ooze, for unctuous mud-bath to my feet a brief second and third rinsing in the crystal running waters rubbing with the fragrant towel—slow negligent promenades on the turf up and down in the sun, varied with occasional rests, and further frictions of the bristle-brush—sometimes carrying my portable chair with me from place to place, as my range is quite extensive here, nearly a hundred rods, feeling quite secure from intrusion, (and that indeed I am not at all nervous about, if it accidentally happens.)
As I walk’d slowly over the grass, the sun shone out enough to show the shadow moving with me. Somehow I seem’d to get identity with each and every thing around me, in its condition Nature was naked, and I was also. It was too lazy, soothing, and joyous-equable to speculate about. Yet I might have thought somehow in this vein: Perhaps the inner never lost rapport we hold with earth, light, air, trees, &c., is not to be realized through eyes and mind only, but through the whole corporeal body, which I will not have blinded or bandaged any more than the eyes. Sweet, sane, still Nakedness in Nature!—ah if poor, sick, prurient humanity in cities might really know you once more! Is not nakedness then indecent? No, not inherently. It is your thought, your sophistication, your fear, your respectability, that is indecent. There come moods when these clothes of ours are not only too irksome to wear, but are themselves indecent. Perhaps indeed he or she to whom the free exhilarating ecstasy of nakedness in Nature has never been eligible (and how many thousands there are!) has not really known what purity is—nor what faith or art or health really is. (Probably the whole curriculum of first-class philosophy, beauty, heroism, form, illustrated by the old Hellenic race—the highest height and deepest depth known to civilization in those departments—came from their natural and religious idea of Nakedness.) Many such hours, from time to time, the last two summers
I attribute my partial rehabilitation largely to them. Some good people may think it a feeble or half-crack’d way of spending one’s time and thinking. May-be it is.

22/02/2014

Até pensei


Canção do sal


Shakespeare - Soneto 116

"Oh, não, o amor é marca mais constante que enfrenta a tempestade e não balança,
É a estrela-guia dos barcos errantes, cujo valor lá no alto não se alcança.
O amor não é o bufão do Tempo, embora sua foice vá ceifando a face a fundo.
O amor não muda com o passar das horas, mas se sustenta até o final do mundo.
Se é engano meu, e assim provado for, nunca escrevi, ninguém jamais amou."

18/02/2014

Mais médicos

A ditadura contagia - EDITORIAL O ESTADÃO

O Estado de S.Paulo - 16/02/2014

Ao cancelar o registro para exercício da medicina pela cubana Ramona Matos Rodríguez, que veio ao Brasil no programa Mais Médicos do governo federal, o Ministério da Saúde exibiu mais uma violação dos direitos individuais dos profissionais da saúde "importados" da ilha caribenha para clinicar no País. Esta portaria do Ministério da Saúde institucionaliza uma situação de "dois pesos e duas medidas", que contraria a igualdade dos cidadãos perante a lei, essencial na democracia.

Há dois anos, o governo brasileiro vinha negociando com a ditadura dos irmãos Castro a vinda de médicos de Cuba para suprir deficiências de pessoal para a saúde pública em nossos grotões. Sob desconfiança generalizada, a equipe de Dilma Rousseff tentou manter tais tratativas sob sigilo. Mas, enfim, seguindo a prioridade do marketing da administração petista, anunciou o programa Mais Médicos para preencher vagas em postos de saúde dos ermos do interior com profissionais estrangeiros, a grande maioria deles cubanos. Empreendido na gestão do ex-ministro da Saúde Alexandre Padilha, candidato do PT, partido da presidente, ao governo do maior Estado da Federação, São Paulo, o plano já mostrou ser uma eficiente forma de conquistar votos nas eleições de outubro, seja para a reeleição de Dilma, seja para a pretensão de fazer de Padilha sucessor do governador de São Paulo, o tucano Geraldo Alckmin, também candidato à reeleição. A população, antes desassistida, do interior mais remoto do Brasil recebeu esses estrangeiros de braços abertos, a ponto de suprir as carências causadas pela baixa remuneração do corpo médico (só no caso dos cubanos) com alimentos e outros mimos. Isso, contudo, não tem sido suficiente para prover uma qualidade de vida compatível com a expectativa destes médicos. A presença de outros estrangeiros, em muito menor número e gozando de condições mais dignas de trabalho, bastou para chamar a atenção dos ilhéus para a cruel discriminação por eles sofrida aqui. Dos 6.658 participantes, 5.378 vieram da ilha caribenha. Os 1.280 de outros países são minoria.

Primeira médica a pedir para se desligar desse programa, Ramona, que trabalhava em Pacajá (PA), deixou o trabalho em 3 de fevereiro, alegando haver desistido do projeto após ter tomado conhecimento de que ganha muito menos do que colegas de outras nacionalidades, embora, por convênio firmado entre Cuba, o Brasil e a Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), seu salário seja de R$ 10 mil mensais. Conforme informou ao líder do DEM na Câmara dos Deputados, Ronaldo Caiado (GO), a quem pediu abrigo para ficar no País, ela, na verdade, recebia o equivalente a R$ 400 por mês, menos que o salário mínimo, de R$ 724.

O Ministério da Saúde reconheceu que, além de Ramona e de Ortelio Guerra, que fugiu do Recife para os Estados Unidos, as prefeituras para cujos postos foram enviados comunicaram o desaparecimento de mais três cubanos. E é provável que a onda de deserções esteja apenas começando. Segundo a organização Solidariedade Sem Fronteiras, que, em Miami, ajuda médicos cubanos que querem desertar, de sete a oito cubanos a serviço na Bolívia, na Nicarágua e principalmente na Venezuela lhe telefonam por semana. Pelos cálculos da entidade, já fugiram pelo menos 5 mil médicos, enfermeiros e terapeutas cubanos numa década.

A situação dos cubanos no Brasil não é menos degradante do que nos países citados. Além da indignidade de pagar à ditadura dos Castros a parte do leão, ficando os trabalhadores com praticamente um troco como remuneração pelo serviço prestado, o governo brasileiro se submete a exigências da ditadura cubana, como a proibição de médicos cubanos saírem das cidades onde trabalham sem autorização. É também o caso do cancelamento do registro de Ramona, que clinicava aqui para contribuir para as divisas de Cuba e o marketing eleitoral dos companheiros brasileiros. Agora, por ordem do Ministério da Saúde, sempre que um médico cubano faltar ao trabalho, sua ausência deve ser comunicada à polícia. Pelo visto, a ditadura cubana é contagiosa.