O dia 13 de junho de 2013 está na
história do Brasil – e certamente, na história da mídia brasileira. Algumas cenas
marcam essa data.
- Datena, apresentador da Band,
abre o seu programa pregando a ordem pública contra a baderna. Faz até uma
enquete: “você é a favor de protesto com baderna?”. Seu programa começa no
final da tarde; quando ele abre, 40 pessoas já forma detidas, entre elas o
fotógrafo do Terra Fernando Borges e o repórter da Carta Capital Piero
Locatelli, por portar vinagre (instrumento contra o gás lacrimogêneo). O
resultado da enquete é surpreendente: a maior parte dos espectadores é A FAVOR
do protesto com baderna. Cenas de helicóptero permeiam o programa; milhares de
manifestantes mobilizados, nada de violência. PM acompanhando. A enquete sai do
ar. Datena muda de opinião e encerra dizendo: “se eu sou o governador, baixo a
passagem hoje mesmo”.
- Globo News faz gigante cobertura
do protesto. Três repórteres escalados, mais helicópteros filmando. Uma das
repórteres (não identifiquei seu nome) presencia, de um lugar seguro, o início
da ação violenta da PM. Para tentar bloquear uma rua, PMs fazem formação de
defesa e atiram bombas de gás a esmo, atingindo inclusive a imprensa. A
repórter descreve a cena da seguinte forma: “Polícia reagiu à violência dos
manifestantes. E é bom lembrar que perto dessa área, existem hospitais,
trabalhadores voltando para a casa”. Entra a outra repórter, que está muito
perto do local: Rosana Cerqueira, acredito. Quando a linha telefônica abre, sai
a sua voz: “Vou ter que desligar, estou correndo da polícia”. Ela não desligou.
- Em editoriais, Folha de S. Paulo
e Estadão afinam o discurso. A Folha afirma que é preciso “Retomar a Paulista“,
cobra ação enérgica da PM e diz que para os vândalos, é preciso dar a lei. O
Estadão vai além: afirma que o governador teve uma postura moderada e precisa
ser enérgico ao restabelecer a ordem. Como não brigam com a notícia, os
jornalistas desses veículos vão ao protesto. Por volta das 20h30, surge no
Estadão a foto de uma menina da Folha com o olho inchado: ela levou uma bala de
borracha no olho. Da PM. Saldo divulgado pela Folha: dois jornalistas levaram
balas de borracha, sete saíram feridos.
O jornalista vai ao protesto para
trabalhar; o policial militar, também. Nenhum deles mobiliza o protesto. Ambos
portam armas de grosso calibre; as do jornalista, a princípio, não-letais.
Quando os jornalistas, que estão trabalhando como os policiais, são agredidos,
isso vira notícia. O manifestante pode ser mal-interpretado, pode ser tratado
como vagabundo, canalha, covarde, filho da puta. O jornalista, não; ele sempre
está ali para trabalhar.
Isso não quer dizer que o
jornalista é melhor que ninguém. Se o ativista pacífico, que leva flores,
apanha, isso também é notícia, e importante. A diferença é que o ativista que
leva flores pode ser confundido com o ativista que resolve quebrar vidros e apedrejar
lojas, por aqueles que desconhecem a genealogia do protesto. O jornalista, não:
ele certamente não estava ali para quebrar nada.
O que me motiva a escrever esse
texto é, especialmente, o sangue nas veias de quem conhece pessoas como Marina
Novaes, Vágner Magalhães e Fernando Borges (todos do Terra, todos agredidos) e
sabe que é muito triste o fato dessas pessoas voltarem para casa com marcas de
cassetete. Eu já apanhei da polícia. Eu já fui ameaçado de prisão. Já fui
colocado contra a parede. Eu já vi pessoas inocentes levarem balas de borracha.
Foi revoltante – seria em dobro se eu estivesse a trabalho.
É impossível, para a mídia grande e
para a mídia pequena, cobrir todos os focos de repressão e violência policial.
O que aconteceu em São Paulo ontem, em outros dias da semana, em Porto Alegre
no mês passado, não é nada perto do que muitos jovens da periferia sofrem
diariamente. Alguns vão inclusive presos por coisas fúteis – porte de maconha
para consumo próprio, p.ex – e outros são totalmente inocentes, e passam dias,
meses, submetidos às sevícias de depósitos humanos como o Presídio Central. As
agruras dessas pessoas raramente são retratadas. Quando são, o esquecimento vem
rápido.
A dor da repressão policial chegou,
ontem, ao centro do Brasil: a Avenida Paulista. A indignação das vítimas chegou
no mesmo lugar, ao mesmo tempo, e veio em forma de revolta.
Sempre acreditei que uma grande
mobilização social no Brasil demoraria bastante para ocorrer. Ainda mais nos
tempos atuais: a moeda é valorizada, o desemprego bate em 4%, o consumo é alto,
a economia, mesmo que esteja mal, é a melhor que temos em muitos anos. Só que
nada disso veio com uma melhora significativa no bem-estar social.
O aumento da passagem é um pretexto
para o padrão do Brasil como país emergente: o serviço encarece, mas não
melhora. O ônibus ficou mais caro, mas não justificou esse aumento – continua
lotando, continua matando os passageiros (como no Rio), continua atrasando.
Como os ônibus, os imóveis também ficaram mais caros e não melhoraram. A saúde
ficou mais cara e não melhorou. A educação ficou mais cara e não melhorou. Os
preços dos ingressos de estádios de futebol encareceram e não melhoraram. A telefonia
encareceu e até melhorou, mas funciona muito abaixo do que deveria.
Diante de tudo isso, a chegada de
uma Copa das Confederações amplifica a indignação. Os estádios são caríssimos,
pagos pelo Estado, e os hospitais, pagos pelo Estado, matam gente por falta de
atendimento. O torcedor é convidado a fazer festa, mas não pode beber, gritar
nem levar instrumentos musicais. A sociedade é democrática mas o governo impõe
padrões de comportamento, padrões Fifa, que são alienígenas à nossa cultura. E
isso em um evento que é feito para celebrar o Brasil. Para mostrar notoriedade.
Para mostrar quão interessante é o nosso país para o mundo.
A indignação está bem longe de ser
sobre o aumento da passagem de ônibus em São Paulo. Em Porto Alegre a passagem
não aumentou e milhares foram à rua na mesma quinta-feira. Em Fortaleza, 6 mil
saíram para criticar o governador. No Rio de Janeiro, milhares foram protestar
contra os ônibus – lá, teve gente MORTA por ônibus este ano e não houve
repressão policial. Há também relatos de atos em Goiânia e Maceió, só nessa
quinta-feira.
Os manifestantes do Gezi Park, em
Istambul, começaram seu ato indignados pelo fim da área verde para a construção
de um shopping. Terminaram protestando contra tudo.
O que essa juventude toda que foi à
rua realmente quer é mostrar que o espaço público é como um time de futebol:
grande por sua gente. Se São Paulo é a locomotiva do Brasil, foi porque as
pessoas fizeram assim. Se o Brasil é referência para o mundo, foi porque o povo
trabalhador brasileiro, da jornada de 44 horas, do transporte público
deficiente, da educação capenga, passa por cima de todas as dificuldades para
produzir diariamente.
O resgate do espaço público é o
resgate de uma consciência coletiva de que é o povo que faz o país, e não o
país que amestra o povo.
Diante dessa visão, fica clara a
enorme dificuldade de diálogo com esse povo. E essa dificuldade de diálogo é
exatamente o que motiva protestos ainda mais fortes.
O belicismo dos editoriais de Folha
e Estadão conversa com o assinante conservador que sustenta sua folha de
pagamento, mas não conversa com a reputação atingida por esses veículos na
sociedade brasileira. O que conversa com a imagem desses veículos é a repórter,
que vai ao local para dar a importância que o protesto merece.
Da mesma forma, a postura legalista
de Alckmin, Haddad e José Eduardo Cardozo dialoga com as bases, as militâncias,
mas não com os eleitores. Quando Alckmin pede energia para combater o
vandalismo e diz que baderneiros devem ser reprimidos, ele claramente não
percebe o que está acontecendo na sua cidade desde o início. Quando Haddad não
acha relevante voltar para as ruas e conversar com os milhares que querem passe
livre, ele minimiza a força das ruas em prol da tênue legitimidade do voto.
Quando José Eduardo Cardozo diz que pode mandar a Polícia Federal e a Força
Nacional para ajudar na repressão, ele conversa com o Jarbas Passarinho que
assinou o AI-5: manda às favas seus escrúpulos de consciência em prol de um
discurso oficialesco e que já sai da boca mumificado.
E quando a presidente Dilma
Rousseff se manifesta sobre a inflação e não sobre as ruas, ela não conversa
com Estela, Luísa, Maria Lúcia, Marina, Patrícia e Wanda, que deixaram a
oposição consentida para lutar pela VAR-Palmares na ditadura.
A genialidade histórica desses
protestos é que, embora eles tenham sido motivados por pessoas à esquerda do
governo, nenhum deles carrega seus vícios. O PT catapultou o Fora Collor em
1992, mas não encheu o saco dos caras pintadas com discursos fechados sobre
arrocho salarial. Muitos dos que estavam vestidos de preto em 1992 nem sabiam o
que era arrocho salarial – eu era um deles, tinha 7 anos, e aos 28 ainda tenho
que procurar no Google. Isso está longe de ser um protesto “não-político”; é
apenas um ato que, por seu momento, consegue ultrapassar a politicagem.
Aqueles que vão para a frente do
computador defender a repressão e carimbar, com seu carimbo interminável de
rótulos, os manifestantes, não merecem preocupação: estão apenas perdendo o
trem da história.
Luís Felipe
dos Santos (publicado em algum lugar da internet)
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