14/06/2013

Milhares já escolheram sapatos que não vão apertar

O dia 13 de junho de 2013 está na história do Brasil – e certamente, na história da mídia brasileira. Algumas cenas marcam essa data.
- Datena, apresentador da Band, abre o seu programa pregando a ordem pública contra a baderna. Faz até uma enquete: “você é a favor de protesto com baderna?”. Seu programa começa no final da tarde; quando ele abre, 40 pessoas já forma detidas, entre elas o fotógrafo do Terra Fernando Borges e o repórter da Carta Capital Piero Locatelli, por portar vinagre (instrumento contra o gás lacrimogêneo). O resultado da enquete é surpreendente: a maior parte dos espectadores é A FAVOR do protesto com baderna. Cenas de helicóptero permeiam o programa; milhares de manifestantes mobilizados, nada de violência. PM acompanhando. A enquete sai do ar. Datena muda de opinião e encerra dizendo: “se eu sou o governador, baixo a passagem hoje mesmo”.
- Globo News faz gigante cobertura do protesto. Três repórteres escalados, mais helicópteros filmando. Uma das repórteres (não identifiquei seu nome) presencia, de um lugar seguro, o início da ação violenta da PM. Para tentar bloquear uma rua, PMs fazem formação de defesa e atiram bombas de gás a esmo, atingindo inclusive a imprensa. A repórter descreve a cena da seguinte forma: “Polícia reagiu à violência dos manifestantes. E é bom lembrar que perto dessa área, existem hospitais, trabalhadores voltando para a casa”. Entra a outra repórter, que está muito perto do local: Rosana Cerqueira, acredito. Quando a linha telefônica abre, sai a sua voz: “Vou ter que desligar, estou correndo da polícia”. Ela não desligou.
- Em editoriais, Folha de S. Paulo e Estadão afinam o discurso. A Folha afirma que é preciso “Retomar a Paulista“, cobra ação enérgica da PM e diz que para os vândalos, é preciso dar a lei. O Estadão vai além: afirma que o governador teve uma postura moderada e precisa ser enérgico ao restabelecer a ordem. Como não brigam com a notícia, os jornalistas desses veículos vão ao protesto. Por volta das 20h30, surge no Estadão a foto de uma menina da Folha com o olho inchado: ela levou uma bala de borracha no olho. Da PM. Saldo divulgado pela Folha: dois jornalistas levaram balas de borracha, sete saíram feridos.
O jornalista vai ao protesto para trabalhar; o policial militar, também. Nenhum deles mobiliza o protesto. Ambos portam armas de grosso calibre; as do jornalista, a princípio, não-letais. Quando os jornalistas, que estão trabalhando como os policiais, são agredidos, isso vira notícia. O manifestante pode ser mal-interpretado, pode ser tratado como vagabundo, canalha, covarde, filho da puta. O jornalista, não; ele sempre está ali para trabalhar.
Isso não quer dizer que o jornalista é melhor que ninguém. Se o ativista pacífico, que leva flores, apanha, isso também é notícia, e importante. A diferença é que o ativista que leva flores pode ser confundido com o ativista que resolve quebrar vidros e apedrejar lojas, por aqueles que desconhecem a genealogia do protesto. O jornalista, não: ele certamente não estava ali para quebrar nada.
O que me motiva a escrever esse texto é, especialmente, o sangue nas veias de quem conhece pessoas como Marina Novaes, Vágner Magalhães e Fernando Borges (todos do Terra, todos agredidos) e sabe que é muito triste o fato dessas pessoas voltarem para casa com marcas de cassetete. Eu já apanhei da polícia. Eu já fui ameaçado de prisão. Já fui colocado contra a parede. Eu já vi pessoas inocentes levarem balas de borracha. Foi revoltante – seria em dobro se eu estivesse a trabalho.
É impossível, para a mídia grande e para a mídia pequena, cobrir todos os focos de repressão e violência policial. O que aconteceu em São Paulo ontem, em outros dias da semana, em Porto Alegre no mês passado, não é nada perto do que muitos jovens da periferia sofrem diariamente. Alguns vão inclusive presos por coisas fúteis – porte de maconha para consumo próprio, p.ex – e outros são totalmente inocentes, e passam dias, meses, submetidos às sevícias de depósitos humanos como o Presídio Central. As agruras dessas pessoas raramente são retratadas. Quando são, o esquecimento vem rápido.
A dor da repressão policial chegou, ontem, ao centro do Brasil: a Avenida Paulista. A indignação das vítimas chegou no mesmo lugar, ao mesmo tempo, e veio em forma de revolta.
Sempre acreditei que uma grande mobilização social no Brasil demoraria bastante para ocorrer. Ainda mais nos tempos atuais: a moeda é valorizada, o desemprego bate em 4%, o consumo é alto, a economia, mesmo que esteja mal, é a melhor que temos em muitos anos. Só que nada disso veio com uma melhora significativa no bem-estar social.
O aumento da passagem é um pretexto para o padrão do Brasil como país emergente: o serviço encarece, mas não melhora. O ônibus ficou mais caro, mas não justificou esse aumento – continua lotando, continua matando os passageiros (como no Rio), continua atrasando. Como os ônibus, os imóveis também ficaram mais caros e não melhoraram. A saúde ficou mais cara e não melhorou. A educação ficou mais cara e não melhorou. Os preços dos ingressos de estádios de futebol encareceram e não melhoraram. A telefonia encareceu e até melhorou, mas funciona muito abaixo do que deveria.
Diante de tudo isso, a chegada de uma Copa das Confederações amplifica a indignação. Os estádios são caríssimos, pagos pelo Estado, e os hospitais, pagos pelo Estado, matam gente por falta de atendimento. O torcedor é convidado a fazer festa, mas não pode beber, gritar nem levar instrumentos musicais. A sociedade é democrática mas o governo impõe padrões de comportamento, padrões Fifa, que são alienígenas à nossa cultura. E isso em um evento que é feito para celebrar o Brasil. Para mostrar notoriedade. Para mostrar quão interessante é o nosso país para o mundo.
A indignação está bem longe de ser sobre o aumento da passagem de ônibus em São Paulo. Em Porto Alegre a passagem não aumentou e milhares foram à rua na mesma quinta-feira. Em Fortaleza, 6 mil saíram para criticar o governador. No Rio de Janeiro, milhares foram protestar contra os ônibus – lá, teve gente MORTA por ônibus este ano e não houve repressão policial. Há também relatos de atos em Goiânia e Maceió, só nessa quinta-feira.
Os manifestantes do Gezi Park, em Istambul, começaram seu ato indignados pelo fim da área verde para a construção de um shopping. Terminaram protestando contra tudo.
O que essa juventude toda que foi à rua realmente quer é mostrar que o espaço público é como um time de futebol: grande por sua gente. Se São Paulo é a locomotiva do Brasil, foi porque as pessoas fizeram assim. Se o Brasil é referência para o mundo, foi porque o povo trabalhador brasileiro, da jornada de 44 horas, do transporte público deficiente, da educação capenga, passa por cima de todas as dificuldades para produzir diariamente.
O resgate do espaço público é o resgate de uma consciência coletiva de que é o povo que faz o país, e não o país que amestra o povo.
Diante dessa visão, fica clara a enorme dificuldade de diálogo com esse povo. E essa dificuldade de diálogo é exatamente o que motiva protestos ainda mais fortes.
O belicismo dos editoriais de Folha e Estadão conversa com o assinante conservador que sustenta sua folha de pagamento, mas não conversa com a reputação atingida por esses veículos na sociedade brasileira. O que conversa com a imagem desses veículos é a repórter, que vai ao local para dar a importância que o protesto merece.
Da mesma forma, a postura legalista de Alckmin, Haddad e José Eduardo Cardozo dialoga com as bases, as militâncias, mas não com os eleitores. Quando Alckmin pede energia para combater o vandalismo e diz que baderneiros devem ser reprimidos, ele claramente não percebe o que está acontecendo na sua cidade desde o início. Quando Haddad não acha relevante voltar para as ruas e conversar com os milhares que querem passe livre, ele minimiza a força das ruas em prol da tênue legitimidade do voto. Quando José Eduardo Cardozo diz que pode mandar a Polícia Federal e a Força Nacional para ajudar na repressão, ele conversa com o Jarbas Passarinho que assinou o AI-5: manda às favas seus escrúpulos de consciência em prol de um discurso oficialesco e que já sai da boca mumificado.
E quando a presidente Dilma Rousseff se manifesta sobre a inflação e não sobre as ruas, ela não conversa com Estela, Luísa, Maria Lúcia, Marina, Patrícia e Wanda, que deixaram a oposição consentida para lutar pela VAR-Palmares na ditadura.
A genialidade histórica desses protestos é que, embora eles tenham sido motivados por pessoas à esquerda do governo, nenhum deles carrega seus vícios. O PT catapultou o Fora Collor em 1992, mas não encheu o saco dos caras pintadas com discursos fechados sobre arrocho salarial. Muitos dos que estavam vestidos de preto em 1992 nem sabiam o que era arrocho salarial – eu era um deles, tinha 7 anos, e aos 28 ainda tenho que procurar no Google. Isso está longe de ser um protesto “não-político”; é apenas um ato que, por seu momento, consegue ultrapassar a politicagem.
Aqueles que vão para a frente do computador defender a repressão e carimbar, com seu carimbo interminável de rótulos, os manifestantes, não merecem preocupação: estão apenas perdendo o trem da história.

Luís Felipe dos Santos (publicado em algum lugar da internet)

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