ANTHONY BURGESS
Sou, por ofício, um romancista. Acredito tratar-se de um ofício inofensivo, ainda que não venha a ser considerado respeitável por alguns. Romancistas colocam palavras vulgares na boca de seus personagens e os descrevem fornicando e fazendo necessidades. Além disso, não é um ofício útil, como o de um carpinteiro ou de um confeiteiro. O romancista faz o tempo passar para você entre uma ação útil e outra; ajuda a preencher os buracos que surgem na árdua trama da existência. É um mero recreador, um tipo de palhaço. Ele faz mímica e gestos grotescos; é patético ou cômico e, às vezes, os dois; ele faz malabarismo com palavras, como se estas fossem bolas coloridas.
O uso que ele faz das palavras não deve ser levado
excessivamente a sério. O presidente dos Estados Unidos usa palavras; o médico,
o mecânico, o general do exército ou o filósofo usam palavras; e essas palavras
parecem estar relacionadas ao mundo real, um mundo em que impostos precisam ser
arrecadados e depois evitados; carros precisam ser dirigidos; doenças, curadas;
grandes pensamentos, pensados; batalhas decisivas, travadas. Nenhum criador de
enredos ou personagens, por maior que seja, deve ser considerado um pensador
sério, nem mesmo Shakespeare. Na realidade, é difícil saber o que o escritor
criativo realmente pensa, pois ele se esconde atrás de suas cenas e de seus
personagens. E quando os personagens começam a pensar e a expressar seus
pensamentos, não se trata, necessariamente, dos pensamentos do escritor.
Macbeth pensa uma coisa e Macduff, algo diametralmente oposto; as ponderações
do Rei não são as mesmas de Hamlet. Até mesmo o dramaturgo trágico é um
palhaço, soprando uma melodia triste em um trombone velho. E então seu ânimo
trágico se esgota e ele se torna um bufão, cambaleando por aí e plantando
bananeiras. Nada que deva ser levado a sério.
Por vezes,
entretanto, um mero recreador como eu pode ser tragado a contragosto para a
esfera do pensamento "sério". Ele se vê forçado a dar sua opinião
sobre questões profundas. A causa dessa obrigação pode ser um repentino
interesse público por um de seus romances - um livro que ele tenha escrito sem
considerar profundamente o significado, cujo objetivo era render algum dinheiro
para pagar o aluguel, mas que acabou adquirindo uma importância não prevista
pelo autor. Ou pode ser um romance em que, graças a uma preocupação ou a um
rancor irredutível em relação a algo que acontece no mundo real, o romancista -
para seu próprio arrependimento - cria algo menos recreativo do que o normal;
algo mais assemelhado a um sermão ou a uma declaração homilética ou didática -
e a elaboração de tais coisas não é, na realidade, a função do romancista. No
momento, encontro-me escrevendo um livro bastante diferente de qualquer outro
que eu tenha escrito, e o motivo pelo qual escrevo não é tanto o interesse
público por um de meus romances, mas o interesse público por um filme realizado
a partir de um dos meus romances.
Tanto o romance quanto o filme chamam-se Laranja Mecânica
(Clockwork Orange). Publiquei o livro pela primeira vez em 1962, e desde aquele
ano conquistou leitores nos dois lados do Atlântico, o suficiente para garantir
sua contínua impressão. No entanto, dez anos depois de corrigir as provas de
gráfica, seu título e conteúdo tornaram-se conhecidos por milhões, não apenas
milhares, graças à adaptação cinematográfica bastante fiel feita por Stanley
Kubrick. Vi-me convocado, então, a explicar o verdadeiro significado, tanto do
livro quanto do filme, em todas as mídias públicas dos Estados Unidos, e também
em algumas da Europa, e minha explicação tem sido, mais ou menos, a seguinte.
Primeiramente, o
título. Ouvi a expressão "tão estranho quanto uma laranja mecânica"
pela primeira vez em um pub londrino, antes da 2.ª Guerra Mundial. Trata-se de
uma gíria cockney antiga que se refere a uma esquisitice ou insanidade tão
extrema que chega a subverter a natureza - afinal, que noção poderia ser mais
bizarra do que uma laranja mecânica? A imagem atraiu-me não somente como algo
fantástico, mas também como algo obscuramente significativo; surreal, mas
também obscenamente real. O casamento forçado de um organismo com um mecanismo;
de uma coisa com vida, que amadurece, é doce, suculenta, com um artefato frio e
morto - seria apenas um conceito assustador? Descobri a relevância desta
alegoria para o século 20 quando, em 1961, comecei a escrever um romance sobre
curar a delinquência juvenil. Li em algum lugar que seria uma boa ideia liquidar
o impulso criminoso por meio de terapia de aversão; fiquei estarrecido. Comecei
a investigar as implicações dessa noção em um breve trabalho de ficção. O
título Laranja Mecânica parecia estar ali, esperando para se vincular ao livro:
era o único nome possível.
O herói, tanto
do livro quanto do filme, é um jovem delinquente chamado Alex. Dei-lhe esse
nome por causa de seu caráter internacional (você não veria um rapaz inglês ou
russo chamado Chuck ou Butch), e também graças às suas conotações de ironia.
Alex é uma redução cômica de Alexandre, o Grande, talhando seu caminho pelo
mundo e conquistando-o. Mas Alex se torna o conquistado - impotente, mudo. Ele
fazia sua própria lei (a lex); torna-se uma criatura sem uma lex e sem léxico.
Os trocadilhos ocultos, claro, não se relacionam com o verdadeiro significado
do nome Alexandre, que é "defensor dos homens".
No início do
livro e do filme, Alex é um ser humano dotado, talvez exageradamente, de três
características que consideramos atributos essenciais do homem. Ele se deleita
com o uso de uma linguagem articulada e até inventa uma nova forma de
comunicação (a esta altura, ele está longe de ser aléxico); ele ama a beleza,
que encontra, acima de tudo, na música de Beethoven; ele é agressivo. Com seus
companheiros - menos humanos do que ele, pois não dão importância à música -
ele aterroriza as ruas de uma grande cidade, à noite. Essa cidade poderia ser
qualquer uma, mas eu a visualizei como uma espécie de amálgama entre minha
nativa Manchester, Leningrado e Nova York. A época poderia ser qualquer uma,
mas é, essencialmente, o hoje. Alex e seus amigos roubam, mutilam, estupram,
vandalizam; acabam matando. O jovem anti-herói é preso e punido, mas punição
não é suficiente para o Estado. Como a prisão não é um inibidor muito eficiente
para o crime, o Home Office ou o Ministério do Interior introduz uma forma de
terapia de aversão que garante, em apenas duas semanas, eliminar propensões
criminosas para sempre.
Alex, em sua
inocência, abraça a oportunidade de ser "curado". Ele tem tanta fé na
indestrutibilidade de sua própria libido que se considera mais do que um
desafio para os especialistas em comportamento do Estado. Injetam-lhe uma
substância que provoca náusea extrema, e a deflagração da náusea é
deliberadamente associada a violentos. Em pouco tempo, ele não consegue ver
cenas de violência sem se sentir desesperadamente enjoado. Fazer amor era, para
ele, apenas um aspecto da agressão; portanto, até mesmo observar uma parceira
sexual desejável desperta a náusea avassaladora. Ele é forçado a andar por uma
corda bamba de "bondade" imposta. A sociedade fica satisfeita e mal
pode esperar por um milênio livre do crime.
Mas homens não
são máquinas, afinal, e o limite entre um impulso humano e outro é sempre
difícil. O tratamento de Alex consistiu em assistir a filmes violentos e sentir
a náusea induzida. Tais filmes empregaram trilhas sonoras de música sinfônica
como "amplificadores emocionais". Após seu tratamento, o delinquente
reformado descobre que não consegue mais ouvir Beethoven sem se sentir
desesperadamente doente. O Estado foi longe demais: invadiu uma região além de
seu pacto com os cidadãos; fechou para sua vítima um universo de belezas
amorais, a visão de ordem paradisíaca que grandes peças musicais transmitem.
Perturbado por uma gravação da Nona Sinfonia, Alex tenta cometer suicídio,
causando perplexidade e despertando compaixão entre os elementos liberais da
sociedade; Alex, então, é submetido a uma terapia hipnopédica que o restaura à
sua condição "livre" anterior. Despedimo-nos de Alex enquanto ele
sonha com novos e mais elaborados métodos de agressão. A intenção era a de um
final feliz.
O que tentei
argumentar, com o livro, era o fato de que é melhor ser mau a partir do próprio
livre-arbítrio do que ser bom por meio de lavagem cerebral científica. Quando
Alex tem o poder da escolha, opta apenas por violência. Entretanto, existem
outras áreas de escolha, como ilustra seu amor pela música. Na edição inglesa
do livro (mas não na norte-americana, tampouco no filme), há um epílogo que
mostra Alex crescendo, aprendendo a desgostar de seu antigo estilo de vida,
pensando no amor como algo maior do que uma forma de manifestar violência; até
mesmo imaginando-se como marido e pai. Tal caminho sempre esteve aberto; ele,
enfim, opta por segui-lo. Antes uma laranja podre, ele agora se preenche com
algo mais próximo da doçura humana decente.
Liberdade de
escolha é mesmo tão importante? O homem é capaz disso? O termo
"liberdade" tem algum significado intrínseco? São questões que preciso
perguntar e tentar responder. Devo registrar que fui ridicularizado e criticado
por expressar meus receios em relação ao poder do Estado moderno - seja na
Rússia, na China ou na que poderíamos chamar de Anglo-América - de reduzir a
liberdade individual. A literatura já denunciou esse poder em livros como Brave
New World (Admirável Mundo Novo), de Aldous Huxley, e 1984, de George Orwell,
mas pessoas "sensatas", que não se comovem muito com textos
criativos, garantem que há pouco com o que se preocupar. O livro Beyond Freedom
and Dignity (O Mito da Liberdade), de B.F. Skinner, foi lançado na mesma época
em que Laranja Mecânica surgiu nas telas, pronto para demonstrar as vantagens
do que poderíamos chamar de lavagem cerebral benéfica. Nosso mundo está em má
situação, diz Skinner, com os problemas das guerras, da poluição ambiental, da
violência civil, da explosão demográfica. O comportamento humano precisa mudar
- isso, diz ele, é autoevidente, e poucos discordariam - e, para tanto,
precisamos de uma tecnologia para o comportamento humano. Podemos deixar de
fora dessa equação o homem interior, o homem que encontramos quando discutimos
com nós mesmos, o ser oculto que se preocupa com Deus, com a alma e com a
realidade absoluta. Precisamos enxergar o homem de fora, considerando
especialmente o que leva uma característica do comportamento humano
transferir-se de um indivíduo para outro. A abordagem behaviorista do homem, da
qual o professor Skinner é um grande expoente, prega que ele é levado a vários
tipos de ações por estímulos de aversão e não aversão. Medo do chicote fazia o
escravo trabalhar; medo da demissão ainda faz o escravo do salário trabalhar.
São tais reforços negativos para a ação que o professor Skinner condena; o que
ele deseja ver são reforços positivos. Você ensina truques a um animal de circo
não por meio da crueldade, mas da bondade. (Skinner deveria saber disso: muito
de seu trabalho experimental foi realizado com animais; alguns de seus avanços
em condicionamento animal aproximavam-se de um nível circense bastante
elevado.) Com os estímulos positivos certos - aos quais respondemos não de
maneira racional, mas por meio de nossos instintos condicionados -, todos nós
poderemos nos tornar cidadãos melhores, submissos a um Estado cujo objetivo maior
é o bem-estar da comunidade. Não devemos, diz tal argumento, temer o
condicionamento. Precisamos ser condicionados para salvar o ambiente e a raça.
Mas precisa ser condicionamento do tipo certo.
Segundo o
discurso skinneriano, é o tipo errado de condicionamento que transforma o herói
de Laranja Mecânica em um nauseado modelo de não agressão. O fato de eu mesmo
considerar qualquer tipo de condicionamento um erro deve ser atribuído,
imagino, à força da tradição religiosa na qual fui educado. Eu fui, pode-se
dizer, condicionado por ela, mas minha consciência aprova as convicções que
sinto em meu âmago. Minha família é de Lancashire, um condado ao norte do Reino
Unido que foi uma fortaleza da fé católica. A Reforma Protestante, que
transformou a Inglaterra no que ela é hoje, nunca chegou a Lancashire ou, caso
tenha chegado, o fez de maneira suave e moderada, nas infiltrações pacíficas
dos períodos mais tolerantes que seguiram as sangrentas imposições dos Tudors.
O tipo de protestantismo que floresceu na época de Cromwell e criou uma nova
estirpe de mercadores burgueses era calvinista. Predestinação era seu eixo
doutrinal. O homem não teria arbítrio sobre a própria salvação; seu estado
futuro havia sido predeterminado por Deus.
O catolicismo
rejeita uma doutrina que parece enviar alguns homens arbitrariamente ao
Paraíso, e outros, de maneira não menos arbitrária, para o Inferno. Seu
destino, diz a teologia católica, está em suas mãos. Não há nada que o impeça
de pecar, se você quiser pecar; ao mesmo tempo, não há nada que o impeça de se
aproximar dos canais de graça divina que são a garantia de sua salvação. O fato
de duas doutrinas opostas - a do livre-arbítrio e a da predestinação - poderem
coexistir na mesma fé religiosa requer explicação. Primeiramente, há a omnisciência
de Deus. Se Deus sabe tudo, Ele sabe se eu serei condenado ou salvo: meu
destino derradeiro foi, digamos, reservado desde o início dos tempos. Mas se
Deus dá ao homem o poder da livre escolha, poderia parecer que Ele está
deliberadamente renunciando à Sua consciência sobre o que o homem fará com esse
poder. Um Deus onisciente e onipotente, em um gesto de amor pelo homem, limita
tanto Seu poder quanto Seu conhecimento.
Sean O'Faolain,
em sua autobiografia, relata uma incapacidade de conciliar o livre-arbítrio do
homem com o conhecimento total de Deus, o que foi resolvido certo dia por um
súbito insight mágico ou milagroso, antes de uma corrida de táxi em Manhattan.
O'Faolain chegou à seguinte conclusão: toda e qualquer ação do homem continuava
uma ação livre até ser executada. Uma vez executada, tornava-se algo que Deus
havia determinado que acontecesse. Ele e o taxista ficaram bêbados para
celebrar a descoberta.
Mas os
calvinistas sempre dispuseram de munição pesada para defender a campanha da
predestinação. Na direção do exército do livre-arbítrio, eles miram o canhão da
Queda. Adão caiu por causa do pecado original da desobediência; ele transmitiu
a culpa por esse pecado a todos os seus descendentes. Os homens são
predispostos a pecar; não são criaturas livres. A resposta ortodoxa para isso
é, claro, a de que Jesus Cristo morreu para que os homens fossem libertados,
mas o calvinismo parece não se entusiasmar com tal fato. As teocracias
construídas pelos calvinistas, cidades-estados ou comunidades inteiras
governadas por homens da fé autoeleitos, foram sempre caracterizadas por uma
espécie de melancolia chuvosa. Veja a Massachusetts de Cotton Mather; a Genebra
do próprio João Calvino. Para eles, permitir que os homens determinassem o
próprio destino era uma marca da depravação católica. Homens são pecadores,
homens não evitarão o pecado (por que deveriam, se estão predestinados ao
Paraíso ou ao Inferno, independentemente do que façam?) Homens precisam ser
obrigados a serem bons; as mulheres, filhas da pérfida Eva, ainda mais. O
calvinismo é repleto de reforços negativos.
Não é meu
objetivo ensinar teologia elementar, e certamente não é minha intenção
considerar o mundo contemporâneo a partir desse ângulo da fé herdada. Estou
apenas demonstrando que certos termos que emprestamos da teologia têm validade
em uma abordagem secular de nossos problemas. Por ser uma pessoa cuja religião
tem sido hesitante por 40 anos, seria hipocrisia de minha parte pregar que,
para acabarmos com as guerras e regenerar os rios poluídos, deveríamos nos
voltar para Deus. O que sugiro é que a religião e outras disciplinas seculares
ou antropocêntricas, como filosofia, psicologia e sociologia, têm algo em
comum: uma consciência sobre a contínua infelicidade do homem. E, talvez, certas
palavras de origem arcaica, como "bem", "mal" e
"livre-arbítrio", até mesmo "pecado original", não precisam
ser substituídas por terminologia pseudocientífica apenas por serem derivadas
de uma abordagem teocêntrica do homem.
"Chamávamos
o tabuleiro de xadrez de branco - chamamo-lo de negro", diz o bispo
Blougram no poema de Robert Browning. Em outras palavras, uma perspectiva
otimista da vida humana é tão válida quanto uma pessimista. Mas de que vida
estamos falando? A de toda a raça ou a do imperceptível fragmento dela que cada
um de nós chama de "eu"? Creio que sou otimista em relação ao homem:
acredito que sua raça sobreviverá; acredito que, por mais doloroso e lento que
seja o caminho, ele resolverá seus grandes problemas, simplesmente por ter
consciência deles. Quanto a mim mesmo, tudo o que posso dizer é que estou
ficando velho, minha visão está ficando embaçada, meus dentes requerem atenção
constante, não posso comer ou beber como antes, fico entediado com cada vez
mais frequência. Não consigo me lembrar de nomes, meu raciocínio funciona
lentamente, tenho espasmos de inveja dos jovens e de ressentimento por minha
própria decadência iminente. Se eu tivesse fé ardente na sobrevivência pessoal,
essa melancolia da senescência poderia ser imensamente abrandada. Mas perdi tal
fé, e é pouco provável que eu a recupere. Às vezes, tenho desejo de aniquilação
imediata, mas a ânsia de permanecer vivo sempre se sobrepõe. Existem
compensações - o amor, a literatura, a música, a rica vivência na cidade
sulista em que passo a maior parte do meu tempo -, mas elas são muito incertas.
Existe um consolo maior e mais duradouro - o fato de que sou livre para
escrever o que desejar, de não ter de seguir nenhum relógio, de não precisar
chamar nenhum homem de "senhor" e submeter-me a ele por medo. Mas tal
liberdade traz seus próprios remorsos: sinto-me culpado se não trabalho; sou
meu próprio tirano. As coisas que tenho agora me eram mais necessárias quando
eu era jovem. Lembro-me da máxima de Goethe: "Cuidado ao desejar qualquer
coisa na juventude, pois você a terá na meia-idade".
Reconheço que
estou em melhores condições do que a maioria, mas não acho que tenha optado por
me eximir da agonia e da ansiedade que atormentam homens e mulheres escravos de
vidas que não escolheram, habitantes em comunidades que odeiam. Penso,
especialmente, nos cidadãos de grandes centros comerciais e industriais - Nova
York, Londres, Bombaim, a minha própria Manchester. "Você comerá seu pão
com o suor do seu rosto": o Livro de Gênesis resume perfeitamente. A
manutenção de uma sociedade complexa depende, cada vez mais, de trabalhos
repetitivos, trabalhos sem prazer ou criatividade. As coisas que comemos, as
roupas que vestimos, os lugares em que moramos tornam-se progressivamente
padronizados, pois a padronização é o preço que pagamos pelos preços que
podemos pagar. A vida simplesmente passa para a maioria de nós, como a hora em
um despertador. Acabamos por nos acostumar com o ritmo imposto pela nossa
necessidade de subsistência; em pouco tempo, passamos a gostar de nossas
amarras.
Um dos slogans
do superEstado no romance 1984, de George Orwell, é "Liberdade é
escravidão". Uma das interpretações possíveis é a de que o fardo de tomar
as próprias decisões é, para muitas pessoas, intolerável. Estar vinculado à
necessidade de decidir por conta própria é ser escravo de seus próprios
ímpetos. Lembro-me de quando me alistei no exército britânico, aos 22 anos.
Inicialmente, me ressenti da disciplina, da remoção de até mesmo a mais ínfima
liberdade (como o direito de comer quanto e o que fosse desejado e o direito de
ir ao banheiro quando o próprio corpo, e não uma corneta, determinasse). Em
pouco tempo, minha redução a mero mecanismo começou a me agradar, a me acalmar.
Participar de um esquadrão obedecendo ordens com o restante do grupo, proibido
de fazer perguntas ou questionar regulamentos - eu estava, depois de quatro
anos de rigorosa vida acadêmica, em férias da necessidade de precisar escolher
o tempo todo. Depois de seis anos, posso simpatizar com o civil que não gosta
de tomar as próprias decisões (onde comer, em quem votar, o que usar). É mais
fácil receber orientações: fume tal cigarro - 90% menos alcatrão; leia tal
livro - 75 semanas na lista de best-sellers; não veja tal filme - é pseudoarte.
Talvez exista
algo de positivo na submissão social, considerando que a vida dos trabalhadores
tem muito pouco espaço para o individualismo: é doloroso ser um especialista em
Spinoza à noite e um operário durante o dia. E existe algo em nossa natureza
gregária que faz com que desejemos nos submeter. Até mesmo os rebeldes
anticonformistas encontram suas próprias conformidades: o "uniforme"
de cabelo longo, barba, calças de algodão trançado, miçangas e amuletos, por
exemplo, e o invariável gosto por maconha e músicas de protesto tocadas no
violão. Uma pessoa precisa se acomodar em um padrão de trabalho para que possa
comer e alimentar a família; uma pessoa pode achar agradável, natural ou
conveniente acomodar-se em seus gostos sociais. Porém, quando os padrões de
conformidade são impostos pelo Estado, as pessoas têm o direito de se assustar.
Infelizmente, a conformidade política que leva a um uniforme, a uma bandeira, a
um slogan, a uma mordaça no livre discurso tende a funcionar a partir de uma
disposição para a obediência em áreas não políticas.
Talvez não
tenhamos obrigação nenhuma de gostar de Beethoven ou de detestar Coca-Cola, mas
é, pelo menos, concebível que sejamos obrigados a não confiar no Estado.
Thoreau escreveu sobre o dever da desobediência civil; Whitman disse,
"Resista muito, obedeça pouco". Para esses liberais, e muitos outros,
a desobediência é uma coisa boa. Em pequenas comunidades sociais (paróquias
inglesas, cantões suíços), o sistema que governa pode, ocasionalmente, ser
adequado à sociedade governada. Porém, quando a comunidade social cresce,
transforma-se numa megalópole, num Estado, numa federação, o sistema de governo
se distancia, torna-se impessoal, até desumano. Ele toma nosso dinheiro para
propósitos que, aparentemente, não aprovamos; trata-nos como estatísticas
abstratas; controla um exército; apoia uma força policial cuja função nem
sempre parece ser de proteção.
Tudo isso,
claro, é uma generalização que poderia ser considerada bobagem preconceituosa.
Eu, particularmente, desconfio de políticos ou representantes do Estado (poucos
escritores e artistas confiam) e acredito que as pessoas entram na política por
duas razões: uma negativa, a de não terem talento para mais nada; outra
positiva, a de que ter poder é sempre delicioso. Contra isso deve ser
considerada a verdade de que o governo cria leis saudáveis para proteger a
comunidade e, no grande mundo internacional, pode ser a voz de nossas tradições
e aspirações. Mas ainda é fato que, em nosso século, o Estado foi responsável
pela maior parte de nossos pesadelos. Nenhum indivíduo ou associação livre de
indivíduos poderia ter chegado às técnicas de repressão da Alemanha nazista, ao
massacre de bombardeios intensos ou à bomba atômica. Departamentos de guerra
podem pensar em termos de milhões de mortos, enquanto o homem médio pode apenas
fantasiar sobre o assassinato de seu chefe. O Estado moderno, seja em um país
totalitário ou democrático, tem poder demais, e provavelmente estamos certos em
temê-lo.
É relevante o
fato de que os livros agourentos de nossa época não sejam sobre novos dráculas
ou frankensteins, mas sobre o que poderia ser chamado de distopias - utopias
invertidas, em que um governo megalítico imaginário leva a vida humana a um
extraordinário extremo de miséria. Sinclair Lewis, em It can't happen here (um
romance curiosamente negligenciado), apresenta uma América do Norte que se
tornou fascista, e as características desse fascismo são tão norte-americanas
quanto torta de maçã. O sardônico e grosseiro presidente estilo Will Rogers usa
as cláusulas de uma constituição escrita por otimistas jeffersonianos para
criar um despotismo que, aos olhos ignorantes da maioria, parece, inicialmente,
mero senso comum. A vitória de intelectuais com cabelos longos e anarquistas
verborrágicos sempre agrada ao homem médio, apesar de poder, na realidade,
significar a supressão do pensamento liberal (a constituição norte-americana
foi escrita por intelectuais de cabelos longos) e a eliminação da divergência
de opiniões políticas. O livro 1984, de Orwell - uma visão aterradora que
talvez tenha evitado uma realidade aterradora: ninguém espera que o ano de 1984
seja igual ao de Orwell - mostra o descarado amor pelo poder e pela crueldade
que muitos líderes políticos escondem sob as flores da retórica "inspiradora".
O "Núcleo do Partido" da Inglaterra futura de Orwell exerce controle
sobre a população por meio da falsificação do passado, para que ninguém possa
recorrer a uma tradição morta de liberdade; por meio da delimitação da língua,
para que pensamentos de rebeldia não possam ser formulados; por meio de uma
epistemologia de "duplipensar", que faz o mundo exterior parecer o
que os governantes querem que pareça; e por meio de simples tortura e lavagem
cerebral.
A visão
norte-americana e a inglesa se aproximam ao pressupor que os instrumentos
aversivos do medo e da tortura são as inevitáveis técnicas do despotismo, que
busca controle total sobre o indivíduo. Mas, no longínquo ano de 1932, Aldous
Huxley, em seu Admirável mundo novo, demonstrou que a submissa docilidade que
poderosos Estados buscam de seus súditos pode ser mais facilmente alcançada por
meio de técnicas não aversivas. Condicionamento pré-natal e na infância resulta
em escravos contentes com a própria escravidão, e a estabilidade é reforçada
não por meio de chicotes, mas de um contentamento imposto pela ciência. Este,
claro, é um caminho que o homem pode seguir se realmente deseja um mundo sem
guerras, crises populacionais, angústias dostoievskianas. As técnicas de
condicionamento estão disponíveis, e talvez, em breve, a condição do mundo
assuste o homem o suficiente para que ele as aceite. Porém, como diz Huxley por
meio de seu herói, um selvagem incivilizado criado em uma reserva indígena, a
felicidade não é, na verdade, o que queremos. O homem é, quase por definição,
uma criatura inquieta - criativa, destrutiva, inclinada ao entusiasmo e à dor.
O jovem selvagem exige o que o admirável mundo novo não pode oferecer:
infelicidade; e se suicida.
"O
homem", diz G. K. Chesterton, "é uma mulher" - ele não sabe o
que quer. Há poucos de nós que não rejeitam imediatamente os pesadelos
orwelliano e huxleiliano. De certa maneira, preferiríamos uma sociedade
repressiva, repleta de polícias secretas e arame farpado, em vez de uma
condicionada pela ciência, em que ser feliz significa fazer a coisa certa.
Todos nós poderíamos concordar com o professor Skinner: uma sociedade bem
governada e condicionada é algo excelente para uma nova raça - uma espécie de
homem racionalmente convencida da necessidade de ser condicionada, desde que o
condicionamento seja baseado em recompensas, não em punições. Mas não somos
essa nova raça, e teimamos em não ser nada além do que somos - criaturas
conscientes das próprias falhas e mais ou menos determinadas a fazer algo para
resolvê-las, e fazê-lo de nossa própria maneira. Poderíamos até pensar em
termos de dois seres humanos: nós mesmos, homens livres ou imperfeitos; e o
novo homem, que ainda surgirá (criação do próprio homem, não da natureza), a
quem talvez possamos chamar de neoantropos, um nome que soa como um
estrangulamento.
Curiosamente, ou
talvez não, as figuras históricas que mais reverenciamos são aqueles homens e
mulheres que lutaram contra a repressão e foram até martirizados por defender
os justos ou bons. Prometeu, Sócrates, Jesus Cristo, sir Thomas More, Giordano
Bruno, Galileu - a lista é extensa, e a história continua a aumentá-la com
heróis como os Kennedys e Martin Luther King Jr. É como se, perversamente,
precisássemos da intolerância por não conseguirmos seguir adiante sem heróis. O
que os grandes intransigentes fazem por nós é lembrar-nos de certos conceitos
absolutos, como bem e mal. Foi a ocupação nazista da França que fez Jean-Paul
Sartre formular uma nova filosofia para o homem, que soa como uma teologia,
apesar de não ser. Ao falar sobre a "era de assassinos" prevista por
Rimbaud, Sartre, em seu Que É a Literatura?, diz:
Fomos ensinados
a levar a sério. Não é nossa culpa nem nosso mérito, se vivemos em uma época em
que a tortura era um fato diário. Chateaubriand, Oradour, a Rue des Saussaies,
Dachau e Auschwitz demonstraram que o Mal não é uma aparência, que saber sobre
ele não o afasta, que não se opõe ao Bem como uma ideia confusa é oposta a uma
ideia clara... Apesar do que desejamos, chegamos a essa conclusão, que parecerá
chocante para almas elevadas: o Mal não pode ser redimido.
O estagnado,
exaurido e corrupto período dos anos 1930 na França representou uma espécie de
condição mecânica, um lúgubre funcionamento da máquina humana. Quando os
franceses estavam submetidos à menor liberdade possível, sob ocupação, vivendo
um paradoxo tipicamente humano, eles estavam, enfim, livres para recuperar um
senso de dignidade da liberdade humana. Ocorreu a Resistência; houve a última e
irredutível liberdade de dizer "não" ao mal. Trata-se de um direito
indisponível em uma sociedade preocupada com reforços de comportamento. O fato
de um homem poder se dispor a sofrer tortura e morte em nome de um princípio é
o tipo de perversidade insana que faz pouco sentido no laboratório dos behavioristas.
Tendemos a usar
o termo "mal" sem estarmos dispostos a defini-lo. Não se trata
exatamente de um sinônimo para "ruim", pois não podemos falar de uma
laranja malvada, exceto poeticamente, ou sobre uma performance maldosa de
violino. Certamente não é um sinônimo para "errado".
"Certo" e "errado" são, sabemos, termos com referências
variadas - em outras palavras, o que é certo em determinada época pode ser
errado em outra. Em um período de guerra contra a Alemanha, pode ser tão errado
ter amizade com alemães que você corre o risco de ser morto por isso. Em um
período de paz, pode ser certo ser amigável com eles, ou, pelo menos, algo de
importância neutra. É certo obedecer quaisquer leis que estejam em voga em
determinado momento, e errado insultá-las propositalmente. Não podemos levar o
certo e o errado muito a sério, pois eles mudam e oscilam com frequência.
Precisamos de conceitos absolutos, como "bem" e "mal".
Nossa atitude em relação ao bem é curiosamente descompromissada ou indiferente;
estamos mais acostumados a ser instruídos a não fazer o mal do que estimulados
a fazer o bem.
O mal é sempre o
mal, e pode ser considerado, talvez, algo essencialmente destrutivo, uma
negação consciente e deliberada da vida orgânica. É sempre maldade matar outro
ser humano, mesmo que, às vezes, seja certo fazê-lo. Talvez seja maldade matar
qualquer organismo, até mesmo o gado e as ovelhas que precisamos para nossa
nutrição. Ser um carnívoro não é certo nem errado, pelo menos na sociedade
ocidental: é algo de significado neutro. O hinduísmo é tão veemente em relação
à santidade de toda vida que se opõe à matança de qualquer coisa, seja por
comida ou até, em certas situações, por autoproteção. É permitido usar uma rede
contra mosquitos, mas não mata-moscas. Eu já vi operários hindus paralisando
grandes empreendimentos imobiliários para proteger a vida subterrânea que subiu
à superfície com o movimento de uma pá. O Oriente e o Ocidente acreditam,
essencialmente, na santidade da vida, mas o Ocidente é mais pragmático em
relação a ela. Em uma espécie de extensão metafórica, o Ocidente vai mais longe
do que o Oriente no que diz respeito ao mal (não apenas ao errado) atribuído à
destruição de um artefato, especialmente se tal artefato for uma obra de arte.
Uma obra de arte é, de certa maneira, orgânica, e rasgar uma pintura ou demolir
uma escultura não é apenas uma ofensa contra a propriedade; é uma ofensa contra
a vida.
Poder-se-ia
considerar o princípio do mal no âmbito da conduta em que a destruição de um
organismo não é intencional. É errado forçar crianças a consumir drogas, mas
poucos negariam que é, também, maldade: a capacidade de autodeterminação
daquele organismo está sendo prejudicada. Mutilar é maldade. Atos de agressão
são maldosos, apesar de sermos propensos a encontrar fatores atenuantes no
espírito passional da vingança ("um tipo de justiça selvagem",
definiu Francis Bacon) ou no desejo de proteger os outros de esperados, senão
praticados, atos de violência. Todos nó guardamos, na imaginação ou na memória,
imagens do mal em que não há sequer um sopro de atenuação - quatro jovens
sorridentes torturando um animal, um estupro em gangue, vandalismo a sangue
frio. Aparentemente, o condicionamento forçado de uma mente, por melhor que
seja a intenção social, é maldade.
The Clockwork Condition
(A Condição Mecânica) © The Estate of Anthony Burgess. Tradução de Henrique B.
Szolnoky
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