Oscar Wilde teria dito certa vez que “nunca devemos lamentar que um poeta seja um bêbado, devemos lamentar
que nem todos os bêbados sejam poetas.” Usando como muleta esta afirmação
cheia de credibilidade, adianto que surpresas às vezes me deixam irritado. Seja
por esperar a entrega do “presente” ou por serem verdadeiramente desagradáveis,
algumas delas não servem para nada. O problema é que devo admitir que outro dia
um bêbado me trouxe uma incidental reflexão sobre a validade das homenagens
póstumas que foi bem instigante e me fez pensar se não deveríamos colocar mais
vezes nossas cabeças para fora do pântano de obrigações e compromissos destes
malditos dias corridos. Odeio correria bem mais que surpresas e é por isso que
sugiro uma leitura paciente - da mesma forma que pedi a alguns amigos aos quais
contei o caso - e antes de dizer que fiquei maluco de vez ou que esta é mais
uma “liçãozinha” de moral barata lembre-se do que disse o criador de Dorian
Gray.
O embriagado maltrapilho em
questão, que nunca mais vi e espero mesmo não ver, era um rapaz de uns vinte e
poucos anos, ou melhor, vinte e dois anos (era seu aniversário e ele fez
questão de mencionar várias vezes), com um físico magricela de fazer inveja a
um canário belga, usando roupas que pela aparência suja e pelo cheiro pareciam
vestir aquele corpo há uns bons três dias, no mínimo. O rapaz ainda por cima
estava, claro, com um bafo tremendo, que afastava, aposto, até moscas daquela
sua boca torta. Este pequeno notável, candidato ao esquecimento, parou em
frente a mesa no bar em que eu e minha esposa estávamos e, depois de muito
importunar e cuspir em nossa direção, ajudado pela paciência que um bom sexo
mais cedo havia me dado, conseguiu “discursar” - esse era o tom - seu
testemunho de tristeza, potencializada pelo álcool, mas ainda assim uma
tristeza que pareceu ser bem sincera, algo além de uma simples lamentação
etílica corriqueira. Uma história barata, mas não uma “liçãozinha” de moral.
Sérgio, vou chamá-lo assim,
entre soluços e distrações com tudo e todos que passavam, contou que falecera
um amigo seu, tinha ido ao velório horas antes. Um amigo de “cachaça e maconha
somente, cerveja não”. Descreveu com lágrimas nos olhos a dor que sentia em seu
coração pela perda, dizendo isso entre um gole e outro do copo de cerveja que o
gaiato tratou de me pedir e ganhar. Era um amigo de infância que acabara de ser
sepultado e aquela bebedeira seria para afogar as mágoas. Fingindo acreditar
nesta última afirmativa dei a ele um cigarro e toda “corda” que ele desejava,
fazendo com que continuasse seu relato, com a lamúria que ainda a esta altura
parecia verdadeira. A história era entrecortada por assuntos atrevidos que
teimavam em vir à sua cabeça desorientada mas ia ficando cada vez mais
interessante ver onde ia parar aquela filosofia contemporânea de boteco. Eu, já
bastante irritado, cheguei a quase desistir de ouvir de tanto que o mequetrefe
desviava a conversa mas resisti por estar interessado e ter percebido também
certa curiosidade em minha esposa, que a esta altura já havia controlado o medo
que têm de bêbados da rua.
Fazendo com que eu praticasse
ágeis esquivas da saliva - isso devia ser esporte olímpico - que ele deixava
escapar a cada palavra proferida, Sérgio enfim me fez entrar na conversa ao
constatar um paradoxo que o revoltava:
- Quando tu morrer - disse
ele - vem um e põe lá uma flor… por quê não dão uma flor pra gente agora que a
gente tá vivo? Ninguém dá.
- E sua namorada Sérgio, nunca te deu flores? Perguntei apenas para mantê-lo focado (mais um esporte olímpico?) na conversa.
- Que nada amigo, ela me dá é surra se eu chegar em casa muito bêbado.
- Então vai preparando o lombo pois hoje vai ter - completei.
- Vai, vai… e vai ser muita surra… - completou ele emendando uma gargalhada.
- E sua namorada Sérgio, nunca te deu flores? Perguntei apenas para mantê-lo focado (mais um esporte olímpico?) na conversa.
- Que nada amigo, ela me dá é surra se eu chegar em casa muito bêbado.
- Então vai preparando o lombo pois hoje vai ter - completei.
- Vai, vai… e vai ser muita surra… - completou ele emendando uma gargalhada.
Cambaleando e soluçando,
deixou sair de sua boca torta palavras mais certas e sensatas que qualquer uma
dos jornais ou revistas que eu tenha lido nestes últimos tempos. O que Sérgio
dissera não era uma verdade absoluta, nem o modo de pensar de quase ninguém que
não fosse meio maluco de nascença; era seu pensamento, sua revolta e amargura
somente, encerrava-se ali. Uma visão de mundo compartilhada sem querer, num
momento inesperado mas que me fez (talvez movido também pelo álcool e/ou pelo
sexo de mais cedo) refletir por algum tempo e tivesse aquilo não como lição de
vida, mas como uma anotação valorosa de canto de página no caderno da
faculdade. Vindo de quem vinha parecia um conto sem sentido, não era. Fez tanto
sentido que dissipou minha descrença inicial e me deixou em concordância com
sua observação.
Seguiu contando que queria
deixar a cidade pois ela estava amaldiçoada por um padre e nenhum negócio daria
certo ali. Seus devaneios etílicos, agora puros e tradicionais foram mais longe,
já enveredando por caminhos que não valem a pena mencionar. O que “martelou”
minha mente naquela noite foi a bela (?), triste e despercebida reflexão sobre
a crueldade do mundo. Uma dura e perpétua realidade que nunca deixa de açoitar
os menos favorecidos mas que felizmente também atinge de raspão os ricos,
famosos e poderosos. Todos recebem homenagens póstumas que deveriam ter sido
prestadas em vida mas não foram. Até artistas são assim, músicos vendem
horrores quando morrem e poetas deixam este mundo na solidão e na miséria, para
ficarem famosos depois de mortos.
Uma demonstração de afeto
parece tão complicada se observarmos a frequência que ocorrem. Marmanjos choram
por um título perdido por seu time do coração mas são incapazes de chorar pelo
amor de suas vidas. Este peculiar episódio me fez pensar em quão tardias são as
homenagens e glórias neste mundo insano. Nos dão medalhas que não encontram
mais peitos para exibi-las ao invés de uma palavra que nos ensine a superar
todo este caos que nos cerca, nos dão lágrimas inúteis que já não podemos
enxugar ao invés de dizerem o quanto somos importantes em vida. Nestes casos
prefiro concluir que o que nos dão é tão inútil quanto o ouro que os faraós
“levavam” consigo para suas tumbas. Se não podem nos oferecer sentimentos
verdadeiros e importantes então que nos ensinem a ficar tranquilos no trânsito
das capitais, ou mostrem como se vota ou… (chega, mais fácil pedir sentimentos
verdadeiros). É bem possível que eu estivesse mais bêbado que o rapaz da boca
torta naquele dia e que ficar com a cabeça submersa no lamaçal seja uma boa
pedida. Fica a dúvida, fica no mínimo o mote para uma próxima reflexão de
alguém debaixo do chuveiro; antes ou depois da maldita correria.
Sandro Marcos - Viciado em atenção e notívago inveterado.
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